Deu na Imprensa: Entrevista Inclusiva – Amanda Gurgel
Durante
muitos dias do mês de maio, o grande tema comentado e compartilhado
pela internet através das redes sociais foi educação. O hit do momento
foi o vídeo de Amanda Gurgel, professora do Rio Grande do Norte que
botou a boca no mundo durante Audiência Pública na Câmara dos Deputados
com o tema “O Cenário da Educação Pública do Rio Grande do Norte”. Sua
fala, foi ao ar ao vivo na TV Câmara do RN, além de filmada e colocada
no YouTube. Com milhões de visualizações, arrancou aplausos da plateia e
dos internautas ao manifestar falas corajosas como “Me preocupa a fala
da maioria aqui, quando dizem ‘não vamos falar da situação precária da
educação pública porque isso todos já sabem’. Estamos banalizando isso?
Estão me colocando com giz e um quadro numa sala lotada me dizendo para
ser a salvadora do país”.
Mesmo
indo do YouTube para o Domingão do Faustão, Amanda não mudou em nada
seu discurso afiado e nem seus ideais. A professora e militante do
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que continua
comendo cuscuz alegado e ganhando 930 reais, fala à Vírus Planetário
sobre a situação da educação no Brasil e a repercussão que o seu caso
teve.
Recentemente,
Amanda recusou o prêmio PNBE. Em seu blog a professora afirmou: “Minha
luta é outra. Espero que a carta sirva para debatermos a privatização do
ensino e o papel de organizações que se dizem ‘amigas da
escola’.(…)Embora exista desde 1994 esta é a primeira vez que esse
prêmio é destinado a uma professora comprometida com o movimento
reivindicativo de sua categoria. Evidenciando suas prioridades, esse
mesmo prêmio foi antes de mim destinado à Fundação Bradesco, à Fundação
Victor Civita (editora Abril), ao Canal Futura (mantido pela Rede Globo)
e a empresários da educação. Em categorias diferentes também foram
agraciadas com ele corporações como Itaú, Embraer, Natura, McDonald’s e
Casas Bahia, bem como a políticos tradicionais como Fernando Henrique
Cardoso, Pedro Simon, Gabriel Chalita e Marina Silva.(…)”
Entrevista por Caio Amorim, Mariana Gomes e Maria Luiza Baldez. Fotos por Caio Amorim
Fale um pouco sobre sua trajetória, em que escola você da aula?
Minha
militância começou no movimento estudantil na universidade. Eu nasci no
Rio Grande do Norte e morei na Bahia por 19 anos. Cheguei a cursar um
ano do curso de Letras na Universidade Estadual de Feira de Santana, na
Bahia. E lá, o movimento estudantil era muito combativo e atuante, mas
eu não podia militar porque, além de estudar, eu trabalhava, e não tinha
tempo. Quando me mudei para o RN, fiz uma tentativa de transferência,
porque a universidade estava em greve. E eu já tinha essa consciência da
importância da greve, apesar de estar sendo prejudicada. Então fiz
vestibular para a UFRN, e lá não tinha Centro Acadêmico. Então comecei a
me aproximar do DCE [Diretório Central dos Estudantes] para mobilizar
as pessoas e construir o CA. Quando entrei na Rede Municipal de Educação
de Natal, em 2006, logo de cara participei de uma greve. E fiquei
chocada com a forma como a direção conduzia a greve. Eu não entendia a
possibilidade de uma direção de sindicato ser aliada ao governo. A
proposta da direção era muito rebaixada e eles a tratavam como a melhor
possibilidade. Eu logo pedi para falar e demonstrei que estava
indignada, e disse que precisávamos honrar quem estava em greve junto
com a gente. Virei oposição à direção do sindicato e me aproximei da
Conlutas. Há 10 meses, sou filiada ao PSTU que, na minha opinião, é o
partido que abriga as vanguardas dos movimentos sociais.
Como foi e está sendo a resposta das pessoas com relação ao vídeo?
Tem
sido demais! É inacreditável. Em todos os lugares as pessoas têm
reconhecido e dado apoio. Já dei até autógrafo (risos), na primeira vez
eu duvidei, perguntei se a pessoa estava brincando, mas ela respondeu
que queria mesmo. Eu fiquei muito sem graça. As pessoas precisam de uma
referência e acabaram encontrando por causa do vídeo.
Existe uma preocupação muito grande da sua parte com relação a essa responsabilidade de ser referência, não é?
Sim,
muita! Eu sempre digo para as pessoas que eu não sou uma heroína e nem
cabe a mim o rótulo de celebridade. Eu sou uma professora como muitas
outras. Não existe, para a classe trabalhadora, nenhuma heroína que não
seja a própria classe trabalhadora. O que eu posso fazer, estou fazendo,
que é cumprir o papel de animar e instigar as pessoas para se
organizarem para a luta, construir manifestações e greves. A partir
disso, as transformações podem ocorrer, e não através somente de mim, ou
da minha imagem, do vídeo. Eu acho que as pessoas estão entendendo
isso, elas me vêem como um símbolo dessa luta, eu não acho isso ruim.
Tenho me esforçado muito para atender aos convites que surgem.
Você acha que a opinião pública mudou depois que muitas pessoas passaram a concordar com as reivindicações trazidas por você?
Eu
acho que está mudando um pouco. No RN, muitas pessoas que nunca
entraram em greve, estão entrando. No congresso do Sindicato Estadual
dos Profissionais da Educação (SEPE) do Rio de Janeiro, muitas pessoas
diziam que queriam tirar foto comigo para mostrar para os colegas que
nunca entraram em greve, para incentivá-los. Eu dizia para levar a foto e
o meu convite para a luta. Outra questão é que eu não tenho exatamente a
postura que foi atribuída aos sindicalistas historicamente. A própria
linguagem, as pessoas dizem que eu não falo “sindicalês”. Eu tenho uma
imagem um pouco diferente do rótulo que foi criado para os
sindicalistas. Eu realmente sou muito calma, mas isso não faz de mim uma
pessoa passiva. Tenho clareza de que só através da luta conquistamos os
direitos.
Como o movimento da greve no RN recebeu essa sua fama?
Eles
estão me considerando uma liderança, uma referência. Nas escolas onde
eu trabalho estou recebendo muito apoio e incentivo para fazer as
viagens que venho fazendo. A partir dessa repercussão, abriu-se o debate
sobre educação nacionalmente. As discussões sobre 10% do PIB para a
educação, por exemplo, estão sendo feitas. É uma oportunidade para
debatermos e, se sou eu o símbolo, é uma obrigação minha fazer isso, é
meu dever. Enquanto esses canais de diálogo com a população estiverem
abertos, eu não vou medir esforços para continuar dialogando.
Quais foram as conseqüências praticas do vídeo? Houve alguma resposta prática?
Em
termos de adesão à greve, foi muito positivo. Houve uma nova visão
sobre a greve, um novo olhar. Como os professores sempre carregaram esse
rótulo de “cuidadores”, muitas pessoas da categoria tinham medo de
entrar em greve, diziam que prejudicariam os alunos. E agora eles estão
começando a enxergar que a greve é um instrumento de luta e um veículo
de divulgação do caos que existe nas escolas. E os responsáveis por esse
caos não somos nós. Quem maneja recursos públicos são os governos, eles
são os responsáveis. Esse novo olhar é um ganho muito grande. Mas, em
termos de negociação, não conseguimos nada.
Qual foi o resultado da greve?
Mesmo
com o crescimento de 8 bilhões da receita do estado do RN, o governo
disse que não pode oferecer reajuste. Nossa greve acabou por
determinação judicial. Recebemos ameaça de corte de ponto, exoneração e
multa de até 500 mil reais para o sindicato. A categoria se sentiu
ameaçada com o corte de um salário que já é precário. Isso aconteceu
também na Paraíba, infelizmente. A única coisa que conseguimos foi o
cumprimento do piso salarial nacional, nada além disso. Depois que houve
o julgamento de ilegalidade da greve, ainda continuamos por mais uma
semana, o que consideramos uma vitória. Foi a primeira vez que uma greve
continuou mesmo depois de uma determinação judicial. Aos poucos a
categoria vai avançando na consciência e percebendo que o poder
judiciário não está ao lado dos trabalhadores.
O
que você tem a dizer para as pessoas que falam que a luta dos
professores é apenas por salários e que o salário não é tão baixo quanto
de outras categorias?
O
fato é que as pessoas debatem educação sem qualquer propriedade. Os
próprios gestores falam sobre educação com base em números e relatórios
de avaliações, e não a partir da realidade, do chão da escola. O custo
de vida no sudeste é mais alto que o do nordeste, mas a jornada de
trabalho no nordeste é muito mais alta. Precisamos levar em consideração
o cotidiano da escola, então, quem fala esse tipo de coisa – e falo
isso sem nenhuma arrogância – não tem conhecimento sobre isso. Se parte
daí, a análise da pessoa, então, não temos como debater. Não se pode
nivelar por baixo. E se as outras categorias também estão insatisfeitas,
eu queria que elas entrassem na luta com a gente. O piso dos
jornalistas do RN, por exemplo, é de 950 reais, é muito baixo. O ideal
seria que eles pudessem lutar junto com a gente. E eu lutaria por eles,
como luto por qualquer categoria.
Você chegou a ser criticada por ir ao Faustão?
Surgiram
algumas críticas, mas as pessoas tem me defendido muito. Algumas
pessoas disseram até mentiras, que eu li um texto que foi escrito pela
produção do programa. Eu nem sei decorar texto! Quando recebi o convite,
fiquei em dúvida se deveria ir ou não. Mas o que está em debate não sou
eu, é o que essa exposição pode causar. E o resultado que tivemos foi
uma plateia cheia aplaudindo as greves do Brasil na mesma emissora que
critica as greves. É uma emissora que sempre boicota as nossas causas e,
se o espaço está aberto agora, vamos aproveitar.
Por que você acha que o vídeo fez tanto sucesso?
Uma
série de fatores levaram ao sucesso do vídeo. Acho que uma delas foi
que ele se passou numa audiência pública e eu me dirigi diretamente à
secretária de educação e aos deputados, que são figuras que as pessoas
temem. Ao fato de ter sido veiculado pelo canal oficial da Assembleia
Legislativa ao vivo, sem possibilidade de edição. E à internet, que
facilitou a divulgação. Mas não houve esforço do PSTU, as pessoas do
partido ficaram sabendo do vídeo depois que já tinha muitos acessos e
comentários.
Você pretende se candidatar a algum cargo político nas próximas eleições?
Isso
vem sendo muito discutido no RN. E há dois pólos pra essa discussão. Um
deles se utiliza disso para dizer que somos oportunistas. O outro lado é
o público, as pessoas me parando na rua e dizendo “você tem que se
candidatar, eu voto em você, faço campanha”. Mas o fato é que esse
debate nunca aconteceu dentro do partido. Primeiro porque quase ninguém
sabia que eu era do PSTU. As questões relacionadas a candidaturas dentro
do partido são discutidas de maneira absolutamente horizontal. São
levados em consideração diversos critérios e não estou sendo tratada com
privilégios por causa do sucesso do vídeo. Além disso, não priorizamos
eleições, não somos um partido eleitoreiro. Nosso principal objetivo é
organizar os movimentos sociais. É natural que eu leve comigo o nome do
partido e vice-versa, até porque, eu tenho orgulho de ser do PSTU. Se
for necessária a minha candidatura, estou à disposição. Mas ainda fico
um pouco assustada e nem tive muito tempo de refletir sobre isso. Agora
que estou tendo a dimensão disso tudo, é meio assustador, mas não há
pressão nenhuma por parte do partido. E temos muita coisa para dar
conta, então não temos posição sobre isso ainda.
Muita gente ficou curiosa para saber que é cuscuz alegado (risos)
(Risos)
Isso é uma coisa que a gente tem muito o costume de dizer no RN.
Porque, nas escolas, os professores não podem ter acesso à merenda,
porque pela lei, ela é para o aluno. E o fato de o professor se
alimentar com a merenda escolar é considerado desvio da merenda. E a
promotora do RN se ocupa muito com essa questão, fiscaliza
periodicamente. Com outras coisas ela não se ocupa, como, por exemplo, o
nosso Plano de Carreira e Salários. Então, eu sempre digo: além de toda
a dificuldade que a gente passa, até esse cuscuz que a gente come tem
que ser alegado? Alegado no sentido de justificado mesmo. E nós alegamos
que temos que comer sim, porque não temos tempo e nem dinheiro para
fazer as refeições fora da escola.
Qual a sua opinião sobre o piso salarial nacional para professores?
Esse
piso estabelecido não nos contempla, porque proporcionalmente, ganhamos
pouco para um jornada de 40 horas. Mas, entendemos que se ele for
implementado agora, não deixa de ser um avanço, principalmente para as
cidades de interior. O salário de um professor no Piauí é de 500 reais.
Então, seria um avanço se não fosse considerado a vitória em si. A
questão salarial está diretamente ligada à qualidade do ensino porque,
hoje, embora seja garantido por lei, o professor não consegue licença
para fazer cursos, mestrado etc. Falam em criar acervos em biblioteca,
mas não adianta, porque o professor não tem tempo de ler.
O que você pensa sobre as verbas para a educação no Brasil hoje?
Não
há como discutir qualquer coisa referente à educação se não discutirmos
investimento. Porque ele interfere diretamente em tudo, seja na questão
salarial – porque quem ganha bem não precisa dar aula em três horários
-, seja na oferta de vagas, na não-superlotação das salas de aula, novas
ferramentas pedagógicas, realização de projetos de inclusão,
atendimentos especiais, como psicólogos e assistentes sociais, enfim.
Muita gente diz que não adianta aumentar o investimento porque metade do
dinheiro fica pelo meio do caminho. Mas se formos esperar a corrupção
acabar para aumentar o investimento, é melhor desistirmos logo.
No
Plano Nacional de Educação (PNE) que foi elaborado no governo FHC, no
outro decênio, e foi implementado pelo governo Lula, as metas não foram
alcançadas, inclusive o investimento de 5% do PIB para a educação. Lula
investiu menos de 3%. A proposta do atual PNE é que partamos desses 3%
com a perspectiva de chegarmos aos 7%, mas sem qualquer garantia de que
isso vai ser feito e nem de onde esse dinheiro vai sair. Não se fala em
auditoria e nem em suspensão do pagamento da dívida pública. No último
ano, 44% da receita brasileira foi para o pagamento da dívida. Não
podemos esperar que esse dinheiro venha do pré-sal, depois de ser
dividido para todas as multinacionais, e sobre quase nada para a
educação. As metas são muito vagas e distantes. Por isso defendemos que o
investimento seja de 10% imediatamente!
Como você avalia o cotidiano da escola, as terceirizações etc?
Essa
questão da terceirização, infelizmente, é uma realidade. No RN,
praticamente todos os funcionários de limpeza, merenda etc. são
terceirizados. Há muito tempo não se realiza concurso, o objetivo é
terceirizar tudo. Nós fazemos cota para café e açúcar para os
professores, somos obrigados a economizar em material, em comida. Às
vezes os professores precisam desistir de realizar atividades por falta
de material, alguns compram do próprio bolso.
Há
pouco tempo você recusou um prêmio do Pensamento Nacional das Bases
Empresariais – PNBE e enviou uma carta a eles. Fale sobre isso.
Enviei
uma carta e eles responderam dizendo que estavam surpresos com a minha
reação. Eu estava numa correria muito grande e não sabia exatamente do
que se tratava o prêmio. Tive que pesquisar bastante para chegar a essa
conclusão e àquela redação, e demorei para dar a resposta. Eles
responderam dizendo que “nossa luta é a mesma”. Se estou diariamente me
posicionando contra os empresários da educação, como posso aceitar uma
premiação desse tipo? Havia um interesse publicitário, talvez, da parte
deles. Eles estavam querendo explorar a minha imagem devido ao sucesso
do vídeo, que até FHC postou no site dele (risos). Teve um setor da
esquerda que, pelo fato de eu ter ido ao Faustão, estava achando que eu
estava preocupada em dar visibilidade ao partido. Então, depois de
recusar esse prêmio, as pessoas viram de que lado estou na luta de
classes.
Fonte: Revista Vírus Planetário
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